
Charles Thomas Tester luta para colocar comida na mesa e manter um teto sobre a cabeça de seu pai, aceitando fazer trambiques e trabalhos obscuros do Harlem a Red Hook. Ele sabe bem o tipo de magia que um terno pode proporcionar, a invisibilidade que um estojo de guitarra lhe oferece e a maldição escrita em sua pele, atraindo os olhares atentos de ricas pessoas brancas e seus policiais. Mas quando faz a entrega de um livro oculto a uma feiticeira reclusa no coração do Queens, Tom abre uma porta para um domínio mais profundo de magia – despertando a atenção de seres que deveriam permanecer adormecidos.
“Ninguém nunca se considera um vilão, não é? Até os monstros têm alta estima de si mesmos. ”
Victor Lavalle, A Balada do Black Tom
Mais conhecido por ser o grande mestre do horror cósmico e ter levado a loucura e o horror existencial a novos patamares, H.P. Lovrecraft era um racista e supremacista branco assumido. Seu preconceito era menos “resquícios de uma época” e muito mais uma intolerância aberta e orgulhosa por praticamente todos que não fossem “puramente” brancos e americanos, incluindo negros, judeus, irlandeses e imigrantes. Embora muitos de seus fãs e estudiosos gostem de ignorar essa parte relevante da personalidade do autor e focar-se apenas nos seus feitos literários, essas crenças muito frequentemente vazavam para suas obras, seja de maneira mais implícita (seres vindos de outros mundos como uma ameaça) seja de fora clara e explícita como em suas cartas e o infame poema: “On the Creation of Niggers“ (Da criação dos pretos em tradução livre).
Em A Balada do Black Tom, Victor Lavalle toma para si a difícil tarefa de fazer uma releitura de um dos contos mais racistas de Lovecraft, fazendo uma homenagem e uma crítica ao autor que ao meu ver traduz e representa muito bem o sentimento de fãs não brancos do Lovecraft.
“Você não pode escolher a cegueira quando é conveniente para você. Não mais.”
Victor Lavalle, A Balada do Black Tom
Baseado em Horror em Red Rook (Uma obra bem ruim mesmo desconsiderando o racismo extremo), A Balada do Black Tom consegue subverter o racismo intrínseco da obra e sair com algo muito mais valioso e genuíno. Além de acrescentar o horror racial a narrativa, Le Valle contrói um personagem principal muito próximo, muito fácil de empatizar e que você quer que vença. Essa construção é essencial para narrativa, pois no climax do livro você consegue sentir a dor do personagem, sentir seu desespero e acompanhar sua jornada final para o abismo torcendo para que ele libere o inferno, e sabendo que o inferno que está por vir, não é nada comparado ao que ele já passou.
Desta forma, o autor transforma um conto raso, sobre um bom detetive que enlouquece ao ver os terrores cósmicos trazidos por imigrantes, judeus e pretos depravados, em uma história cheia de camadas, criticas sociais, horror e uma jornada de conhecimento, perda, horror e vingança. O arco final do livro é carregado de vários significados e permite distintas interpretações e isso fica ainda mais rico considerando a obra original.
“Eu carrego um inferno dentro de mim. E vendo todos insensíveis a isso, desejei arrancar as árvores, espalhar caos e destruição ao meu redor, e então sentar e desfrutar a ruína.”
Victor Lavalle, A Balada do Black Tom
Dito isso, volto ao questionamento: é possível aproveitar obras racistas? Creio que sim, é fantástico ver o que um autor negro fez com a obra de um racista convicto. Território Lovecraft, mesmo sendo escrito por um autor branco, também faz um papel impecável nesse sentido. Os talentos literários de Lovecraft são inegáveis e é muito bom saber que seu legado está sendo subvertido e aproveitado por autores brancos e negros, para escrever horrores muito mais ricos, assustadores, complexos e diversos.